Pai:
Entre o nome e a função
8/25/20252 min read
Pai:
Entre o nome e a função
Na superfície da língua, “pai” parece simples: um nome que damos ao homem que nos gerou. Mas, no subsolo da experiência, ele é muito mais que carne e sangue — é um simbólico onde habi tam a lei, a promessa, o corte e o cuidado. No hebraico antigo, אָב (av) nomeava o progenitor e o fundador — aquele que inaugura uma linhagem, transmite uma herança e oferece um ponto de origem. Avraham, o pai de muitas nações, carrega em seu nome a ideia de expansão: o pai como aquele que abre caminho para o que ainda não existe. No consultório, esse av pode ser a figura que inaugura para o sujeito a possibilidade de existir para além da fusão com a mãe, introduzindo a criança na dimensão do “há um mundo lá fora”. No grego, πατήρ (patēr) carrega a formalidade do título, a instância da lei e da ordem. No mundo psíquico, é a função que nomeia, limita e autoriza. O patēr é o que separa, mas também legitima o desejo. Sem ele, o sujeito corre o risco de permanecer aprisionado no gozo sem borda, no caos do ilimitado. A clínica mostra que, quando o patēr falha, o indivíduo pode oscilar entre a ausência de direção e o peso excessivo da lei internalizada — uma lei sem afeto, sem corpo. No aramaico, אבא (abba) é intimidade. É o pai que se pode chamar no meio da noite, não como autoridade distante, mas como presença confiável. O abba é a função paterna investida de ternura: o que sustenta sem esmagar, o que escuta sem apenas julgar. Ele lembra que a lei só é suportável se vier acompanhada de amor — e que o corte, para não ser traumático, precisa ser feito com mãos que seguram. Freud nos falou do pai como aquele que, no mito, barra o incesto e funda a cultura. Lacan, como aquele que, ao “nomear”, inscreve o sujeito no campo simbólico. Mas, no trabalho clínico, aprendemos que há tantos “pais” quanto histórias: há o pai ausente que mesmo assim delimita; o pai presente que nunca se inscreveu; o pai que é função encarnada em avós, mães, mestres, analistas. Entre av, patēr e abba, vemos que a palavra “pai” oscila entre três polos: fundação, lei e cuidado. O sujeito saudável precisa, em algum momento de sua vida, encontrar-se com os três — nem sempre no mesmo homem, nem sempre na figura biológica. E talvez o nosso trabalho, enquanto analistas, seja ajudar o paciente a encontrar dentro de si o pai que lhe faltou fora: o que inaugura (av), o que estrutura (patēr) e o que sustenta (abba). Porque sem esse encontro interno, seguimos caminhando pela vida como filhos sem chão — à espera de um nome que nos diga que podemos, finalmente, existir.
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